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segunda-feira, 30 de abril de 2012

JOHANNESBURG, OU "RIO + 10" - 2ª CÚPULA MUNDIAL SOBRE O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Introdução (*)

 

A 2ª cúpula mundial sobre o desenvolvimento sustentável foi convocada em agosto de 2002 para a implementação das propostas da "Agenda 21". A concretização da 1ª cúpula – "Rio 92" – era tão restrita que o objetivo principal da 2ª cúpula não foi elaborar novas propostas mas, antes de tudo, pôr em prática o que tinha sido definido 10 anos antes. Parecia que, em matéria de desenvolvimento sustentável, nada significativo tivesse sido alcançado na década de 90.

 

A "Rio 92" tinha sido um relativo sucesso. A "Agenda 21" propunha 2.500 medidas, elaborando um quadro geral para responder ao conceito, então novo, do Desenvolvimento Sustentável. Cada país devia elaborar a sua própria "Agenda 21", adaptada à sua realidade. Na dinâmica da caída do muro de Berlin, o tema da sustentabilidade surgia como nova prioridade para o futuro da humanidade. Além da "Agenda 21", duas Convenções sobre o clima e a biodiversidade propunham metas mais concretas. As ONGs e os movimentos sociais foram convidados a participar na elaboração dos objetivos; fizeram muitas propostas e publicaram a bela 'Carta da Terra'.

 

No entanto, o caminho do Rio até Johannesburg não foi bem aquele esperado. Houve altos e baixos, tanto do lado dos governos como da parte da sociedade civil. Na "Rio + 5", em 1997, em Kyoto (Japão), a avaliação da aplicação das propostas do Rio deixou claro que a implementação da Agenda 21 era bastante deficiente na maioria dos países. O número de ONGs ambientais tinha aumentado sensivelmente, mas não conseguiam se articular, nem entre si, nem entre as do Norte e as do Sul, nem entre as ambientais e as sociais ou dos Direitos Humanos.

 

Por que tão poucos avanços? Na década de 90, a onda do livre mercado avançou mais rapidamente que as propostas do desenvolvimento sustentável. Os governos dos países em desenvolvimento ficaram mais preocupados em aplicar o "consenso de Washington" e os programas de ajuste estrutural do FMI do que em implementar as recomendações da Agenda 21. Foi assim que o Brasil publicou a sua própria "Agenda 21" apenas em julho de 2002, dois meses antes de Johannesburg! A Rodada Uruguai em 1994 e a criação da OMC em 1995 deram novo impulso à liberalização multilateral do comércio. As políticas neoliberais não resolveram os problemas da miséria e da marginalização de parte crescente da população mundial. Ampliou-se o conflito entre a lógica neoliberal de maior produção e consumo, sem freio e com enorme desperdício, e a visão dos ambientalistas, alarmados diante dos riscos e ameaças crescentes de destruição irreversível do Planeta. O poder das multinacionais na definição das políticas econômicas e financeiras foi substituindo o dos Estados, tornando-os meros vassalos destas. A mobilização da sociedade civil contra a mercantilização geral, contra o empobrecimento e 'miserabilização' de povos inteiros e contra a destruição ambiental marcam uma nova etapa no confronto antagônico entre o modelo produtivista-consumista prevalente e a proposta do desenvolvimento sustentável.

 

Nesse contexto de "sociedade-mercado", por rico que seja, o conceito de Desenvolvimento Sustentável ficou vago e não foi aprofundado. Dois paradigmas se chocaram: o Rio-Kyoto, sublinhando o multilateralismo, a sustentabilidade e a participação ativa da sociedade civil, e o outro do FMI-OMC, insistindo nas forças de mercado, mantendo a sociedade civil à distância dos processos de decisão. Não houve elaboração de metas concretas e precisas, com prazos e meios definidos. Foi assim que, em Johannesburg, mais numerosas e melhor articuladas do que dez anos antes, as ONGs não tiveram a mesma influência política do que no Rio.

 

Que estava em jogo?

 

Oficialmente, o tema da cúpula de Johannesburg era o do Desenvolvimento Sustentável. No "relatório Bruntland" à ONU em 1887, o conceito é definido como "um desenvolvimento que responda às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de responder às suas". Fundamenta-se na constatação de que "não se pode continuar assim". O conceito tenta articular o avanço econômico, a proteção ambiental e o progresso social. Ou, dito de maneira mais simples, visa juntar os 3 "P": Povo, Planeta e Prosperidade. Mas, além das definições bonitas, o conceito serve a muitas interpretações divergentes. Paises pobres insistem na luta contra a pobreza (povo); paises ricos defendem a produção e o consumo (prosperidade); outros ainda focalizam a proteção da criação (planeta).

 

A cúpula não devia enfrentar apenas o problema da pobreza ou do livre comércio como o queriam uns e outros paises, mas também os desafios da preservação ambiental. Inundações enormes na China, no Bangladesh, na América central e na Europa; securas e fomes no Sul da África, esses catástrofes naturais, resultados das mudanças climáticas, são a expressão mais direta das graves ameaças ambientais já existentes. A 'descoberta' em cima da Ásia duma imensa nuvem escura de 30 milhões de km 2 de superfície e 3 km de espessura e os buracos crescentes na camada de ozônio ilustram, eles também, a urgência de medidas paliativas e preventivas. Johannesburg devia teoricamente integrar as três dimensões da sustentabilidade.

 

Várias cúpulas simultâneas

 

Os números traduzem parcialmente a importância do maior encontro mundial da ONU. Falou-se de 64.000 mil pessoas. Incluem-se os 25.000 delegados de ONGs, grupos, movimentos vindos dos quatro cantos da terra, entre os quais um bom número de ativistas da África do Sul; os 5.000 delegados oficiais de 196 paises presentes; os 2.500 jornalistas, e as aproximadamente 30.000 pessoas da infraestrutura trabalhando para o bom desenvolvimento da cúpula que, aliás, foi muito boa: transporte, segurança, trânsito, recepção, reprodução e distribuição de materiais, etc. Os objetivos e as funções de tantos participantes eram muito diversos e, de fato, ocorriam vários eventos simultâneos.

 

Em Sandton, no norte da cidade, nas muitas salas do elegantíssimo centro de convenções, tinha lugar a cúpula oficial para, antes de tudo, negociar o "plano de ação", documento principal que devia ser elaborado no encontro. De fato, aconteciam lá pelo menos dois encontros: o oficial para todas as delegações oficiais, e um outro, atrás das portas, as negociações entre os "grandes": EUA, UE e outros paises desenvolvidos conforme os temas, preparando os acordos que seriam levados à sala de negociação oficial.

 

No sul da cidade (a 40 km de Sandton), no parque de exposições de Nasrec, acontecia o encontro das ONGs, às vezes apresentado como 'contra-cúpula', lugar de frêmito intenso, com a participação ativa de milhares de ONGs, grupos, associações, movimentos, cada um apresentando suas atividades nos stands, organizando fóruns, seminários, oficinas, debates, etc. Os objetivos de tantos grupos eram diferenciados. Alguns queriam antes de tudo confrontar suas experiências às de outros grupos/Ongs com práticas semelhantes; outros queriam influir no desenvolvimento das negociações em Sandton.

 

Perto de Sandton, Ubuntu Village estava o lugar de exposições dos países mais ricos e das empresas multinacionais. Algumas delas patrocinavam a organização deste imenso espaço. País ou multinacional, cada um rivalizava na propaganda para mostrar tudo o que já estavam fazendo para promover a sustentabilidade.

Muitos encontros, debates, oficinas, atividades culturais e exposições sobre temas específicos como o da água, aconteceram também em outros lugares de Joburg (diminutivo utilizado pelos habitantes da cidade). A amplidão do evento mundial influenciou boa parte da animação da cidade durante duas semanas.

 

Negociar o quê?

 

"Rio + 10" visava primeiro promover a implementação das propostas da Agenda 21. Para isso, ao longo de 4 encontros preparatórios, a ONU preparou um longo "plano de ação" que devia ser o 'prato principal das negociações'. O objetivo era chegar a propostas precisas e concretas, com prazos e meios fixados. No final do 4° encontro preparatório, em Bali (Indonésia), em maio de 2002, um esboço do longo documento foi publicado: 77 páginas bem cheias (na versão inglesa), com 152 parágrafos. 70% do documento foi aprovado em Bali. As partes 'entre colchetes' – para ser negociadas durante a cúpula – diziam respeito ao comércio, às finanças e à globalização, que seriam de fato os enfoques mais conflituosos nas negociações. Como sabemos, as pessoas e os paises podem entender-se sobre tudo, mas quando se trata de dinheiro, aí começam os conflitos. Podemos mencionar já aqui os 14 pontos que foram objeto de maior tensão entre os EUA e a UE: 1) princípios de Rio; 2) boa governança; 3) direitos humanos; 4) saneamento; 5) fundo de solidariedade; 6) energia; 7) produção e consumo; 8) comércio e finanças; 9) recursos naturais (biodiversidade); 10) mudanças de clima; 11) bens públicos comuns; 12) dimensões sociais; 13) parceria; 14) globalização. Voltaremos sobre esses pontos, quando considerarmos os resultados.

 

No mês de maio, respondendo de certa maneira à preocupação de muitas ONGs que consideravam o esboço de plano de ação preparado em Bali muito pobre e esvaziando de sentido a própria cúpula de Joburg, Kofi Annan, secretário geral da ONU, publicou uma carta pedindo que 5 pontos fossem a prioridade das negociações durante a cúpula. Este pedido foi, de fato, aceito. A carta – chamada às vezes de WEHAB, a partir da primeira letra das 5 prioridades em inglês (água, energia, saúde, agricultura, biodiversidade) – ia se tornar uma referência concreta.

 

Os principais negociadores

 

Os chefes das delegações oficiais eram os principais articuladores das negociações. Cada país tinha um número diferente de negociadores. Os mais ricos podiam chegar com mais de 300 negociadores (caso dos EUA), cada um especializado sobre um ou outro ponto em discussão. Muitos países não tinham os recursos para tantos gastos. A delegação oficial brasileira, com 51 membros inscritos, tinha certo peso. Tanto pelo seu tamanho, pela superfície da sua floresta amazônica, pelos seus numerosos recursos hidrológicos e pela sua riquíssima biodiversidade como pelas suas propostas avançadas (a maioria das vezes comuns com as da UE,da África do Sul, entre outros paises) e pelo fato de ter sido a país da "Rio 92", o Brasil teve presença destacada nas questões ambientais, mesmo se no final "é o dinheiro que manda", e o país está passando mal neste campo.

 

As alianças entre paises ou grupos de paises variavam conforme os pontos discutidos. Os EUA, os maiores opositores a decisões concretas com metas, prazos e meios marcados, foram muitas vezes apoiados pelo Japão e a Austrália. A União Européia, aliada com os EUA nas questões comerciais, de finanças e de globalização, estava mais próxima do G77 nos temas da luta contra a pobreza e ambientais. Os paises em desenvolvimento, agrupados no G77 (de fato são 132 países), presidido no segundo semestre de 2002 pela Venezuela, estiveram unidos sobre a maioria dos temas, salvo a energia. A China, mesmo que muitas vezes próxima do G77, não queria ser considerada como integrando esse grupo; daí o nome utilizado: G77/China.

 

O lobby

 

O lobby é uma dimensão essencial em cada processo de grandes negociações. Empresas multinacionais gastam muito dinheiro e têm os homens melhor preparados para defender os seus interesses em Washington, em Bruxelas ou nas capitais dos países ricos. Cada país defende antes de tudo os seus interesses econômicos, que são muitas vezes os das suas empresas multinacionais. Grandes ONGs internacionais também adquiriram uma boa capacidade para tentar defender os interesses mais comuns da sociedade e dos cidadãos.

 

Em Johannesburg, pela primeira vez, as empresas multinacionais estiveram fortemente presentes e, como veremos, conseguiram enormes resultados. Falou-se da participação ativa de 200 multinacionais, estreitamente articuladas numa "organização empresarial para o desenvolvimento sustentável" (no Brasil: Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável – CEBDS), com porta-voz único: o antigo presidente da Shell. Muitas vezes, os interesses dessas empresas eram defendidos pelos próprios delegados oficiais. Mas também elas tinham os seus próprios representantes para lembrar algumas exigências aos negociadores, se fosse necessário. Estavam presentes em Ubuntu Village, com muitos recursos, expondo seus projetos de ajuda à sustentabilidade.

 


Ainda que com menos recursos, as ONGs também tentaram ter voz nas negociações. Existem nos próprios procedimentos da ONU mecanismos de consulta à sociedade civil. Mas o lobby principal se faz junto aos negociadores. Poucas ONGs têm conseguido a capacidade de intervir 'profissionalmente' nos processos de negociação. Para ter peso, elas se beneficiam do apoio de milhares de outras ONGs 'na retaguarda' e da opinião pública. Assim, se a maioria das ONGs tinham as suas bases em Nasrec, um grupo delas estava muito ativo em Sandton. Para esta 2ª Cúpula de Terra, sete grandes ONGs internacionais tinham-se juntado (entre elas: Amigos da Terra, WWF, Greenpeace, Oxfam) na "Eco-Equity" para aumentar o seu peso e a sua capacidade de intervenção. Eco-Equity preparou uma resposta justificada a todos os parágrafos entre colchetes do plano de ação. Durante a cúpula oficial o grupo conseguiu, de fato, uma boa presença fornecendo diariamente excelentes boletins ao conjunto das ONGs, à imprensa, e até a delegados oficiais 'perdidos' nos labirintos das negociações. Esses boletins resumiam o que estava em jogo e o andamento dos jogos de força entre os paises no processo de negociação.

 

Infelizmente, a coordenação das ONGs da África do Sul, que organizou muito bem a cúpula das ONGs em Nasrec, não conseguiu se articular suficientemente para produzir um documento alternativo à declaração oficial. Merece, porém, ser mencionada a grande marcha organizada, antes da chegada dos chefes de Estado e governos, por movimentos sociais e em particular dos Sem-terra na África do Sul, com boa participação de delegados internacionais, desde a miserável favela, Alexandra, até o bairro muito chique de Sandton, onde acontecia a cúpula oficial.

 

O papel da ONU

 

A iniciativa de tamanho evento mundial só podia vir da ONU. No entanto, faz-se necessário perguntar sobre o peso dessa organização no desenvolvimento das negociações. O secretário geral da cúpula e dos seus quatro eventos preparatórios, foi o indiano Nitin Desai, homem aberto, próximo de Kofi Annan. Já vimos, como a preparação dum 'plano de ação' concreto em Bali tinha sido bloqueada pelos EUA. Kofi Annan tentou relançar a dinâmica com as cinco propostas prioritárias: água, energia, saúde, agricultura e biodiversidade. O secretário geral da ONU, hábil diplomata, é uma figura muito respeitada. Mede as suas palavras e não fala em vão. Defende eficazmente a credibilidade e o prestígio moral da ONU. Faz bons discursos, mas, como para o Papa, ninguém aplica as recomendações. Quem manda são os paises mais ricos, cada um defendendo os seus interesses, e os resultados das negociações correspondem à correlação de forças existente na plenária.

 

A situação do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) reflete esta situação. Apesar dos riscos de destruição irreversível do planeta com graves conseqüências para a humanidade, o meio ambiente não é prioridade para os ricos, focalizados na obtenção de benefícios a curto prazo. O eficiente diretor executivo atual, o alemão Klaus Tötfer, não conseguiu para o PNUMA os recursos e a autoridade legal suficientes para administrar, em nome da comunidade mundial, problemas universais. Os apelos para que esta organização onusiana tenha os meios de atuar em nome de todos foram ignorados.

 

O desenvolvimento das negociações

 

O conjunto das negociações deve ser situado na continuidade da década da liberalização geral do comércio. A rodada Uruguai, primeira grande abertura das fronteiras, foi assinada em 1994 e, em continuidade, em 1995 foi criada a OMC. A tentativa abortada de fazer aprovar, às escuras, o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) foi retomada na preparação duma nova rodada – a rodada do Milênio – que devia ser muito mais abrangente que a anterior, para ser lançada em Seattle em 1999. Os conflitos de interesses entre os EUA e a UE e a mobilização da sociedade civil bloquearam a proposta da OMC. Doha (Qatar; novembro 01) relançou a iniciativa duma nova rodada de livre comércio, chamada "rodada do desenvolvimento". Para financiar o desenvolvimento, o encontro dos chefes de Estado e governos de Monterrey (México; março 02) promoveu as iniciativas do setor privado. É neste contexto global que se desenrolaram as negociações em Johannesburg. A dinâmica geral já estava indicada. Não houve surpresas, mas, sim, a confirmação – com algumas pequenas concessões – do que a maioria das ONGs temia. A 'declaração de Doha' e o 'consenso de Monterrey' foram muitas vezes citados como referência para o comércio e as finanças, enquanto Durban (África do Sul; dezembro 01) sobre o racismo, a tolerância e os direitos humanos, e Roma (junho 02) sobre a soberania alimentar não foram nenhuma vez mencionados.

 

Sobre os principais pontos em litígio (comércio, finanças, globalização), os EUA e a UE prepararam sozinhos, surpreendendo e desagradando os outros paises, um texto alternativo que foi colocado na mesa do presidente e do secretário geral. Gesto que expressava claramente quem estava de fato negociando. Os 'grandes', às vezes opostos mas muitas vezes unidos e fazendo concessões mútuas na defesa dos seus interesses respectivos, monopolizaram as negociações. Até o pequeno 'acidente' na noite do 31/8 para o 1/9 ilustra o conluio dos interesses entre os ricos. Na reta final das negociações, justamente antes da chegada dos chefes de Estado e governo, diante do bloqueio geral dos EUA, a UE saiu da sala de negociação, propondo submeter as decisões à autoridade dos ministros. Isso teria atrasado e complicado bastante as decisões. A UE voltou duas horas mais tarde, à meia noite. Até as três da manhã houve uma troca de arranjos entre os dois blocos.

 

Resultados: opiniões contratadas.

 

As apreciações contrastadas dos diferentes atores relativizam os resultados. As empresas transnacionais e os governos dos países ricos – grandes vencedores – consideram que "a cúpula avançou na direção certa"; mas, os governos dos paises mais pobres e as ONGs consideram que toda a humanidade e a Terra perderam de vez.

 

O discurso das empresas é mais entusiasta: "Não vejo a possibilidade de qualquer desenvolvimento sustentável sem implicar as empresas... o que nos interessa é o concreto, enquanto as ONGs trabalham mais no político... assumimos nosso estatuto de empresa privada e nossos imperativos de resultados; pensamos que nossa capacidade pode ajudar a resolver os problemas da pobreza" opinava um dirigente empresarial, entre muitos outros.

 

As ONGs são mais críticas; desilusão, amargura e frustração apareceram nas suas avaliações. Para a maioria delas, a comunidade internacional está muito longe dos compromissos assumidos no Rio: "os governos continuam mostrando uma trágica falta de vontade de traduzir os princípios do Rio em ação. Ao contrário, assistimos à fuga das responsabilidades pelos Estados, à promoção do mercado como árbitro maior das questões sociais e ambientais", à uma submissão irresponsável dos Estados à globalização liderada pelas multinacionais". A declaração final de algumas grandes ONGs diz: "Como dizer que vamos reduzir a pobreza da metade da humanidade sem objetivos e compromissos concretos, sem datas, só com boa vontade? ... a Cúpula foi refém das multinacionais; os verdadeiros vencedores da Conferência são os paises como os EUA, a Austrália ou a Arábia Saudita, que não queriam engajamentos quantitativos e que defendem a indústria do petróleo... toda a cúpula apenas legitima a agenda do livre comércio". Ao entusiasmo de uma grande multinacional das águas, o coordenador mídia das ONGs respondeu : "o problema é que não sabemos se os mercados do sul trarão benefícios às empresas. Daí o perigo de os que não puderem pagar serem excluídos pelas empresas que vão gerenciar a água ou a energia". Os grandes objetivos sociais do Milênio definidos em Conferências internacionais anteriores foram deixados de lado.

 

Muitos governos de paises em desenvolvimento têm uma apreciação próxima à das ONGs: "Que diferença entre os discursos e a ação! Os maiores poluidores se declaram os maiores defensores da causa ambiental, e não querem assumir nenhum compromisso para salvar o planeta, nem manter os objetivos oficiais da ajuda para o desenvolvimento" declarou o presidente do Equador.

 

Os resultados do 'WEHAB'

 

Água e saneamento: a proposta de reduzir pela metade, até 2015, o número das pessoas que não têm acesso nem à água potável (1,1 mil milhão) nem ao saneamento (2,4 mil milhões) é uma das poucas medidas em favor das populações mais pobres. A proposta supõe que se dê acesso à água a 200.000 novas pessoas cada dia, e o custo global é avaliado em US$ 180 mil milhões. Mas não há indicação de quem promoverá tal proposta. Serão as multinacionais da água?

 

Energia: foi um dos últimos pontos das negociações, tamanha era a resistência dos EUA e das multinacionais e países produtores de petróleo. Diante do esquentamento do planeta e das mudanças de clima, a proposta da Convenção sobre o clima na "Rio 92" foi de trazer as emissões de gases com efeito estufa ao nível de 1990 até 2000. Não foi feito. A proposta da Convenção foi reforçada com o Protocolo de Kyoto em dezembro de 1997: reduzir até 2012 as emissões de pelo menos 5% em relação ao nível de 1990. A UE e o Brasil, com outros paises, lideraram a assinatura e ratificação do Protocolo, e propuseram aumentar até 15% em 2015 as energias renováveis na produção energética mundial. Até Johannesburg, alguns paises grandes poluidores não tinham ratificado o protocolo de Kyoto. Este foi lembrado no plano de ação, mas sem caráter obrigatório. O anuncio público, desde a tribuna principal da Cúpula, pelo Canadá, a China, a Índia e a Rússia de que iriam ratificá-lo sem demora foi uma das boas novas da Cúpula. Os EUA e a Austrália ficam isolados. Mas a proposta dos 15 % foi reduzida ao apelo a um "aumento substancial", sem meta quantitativa nem prazo.

 

Saúde: o texto tinha sido aprovado em Bali, mas o Canadá queria reabrir a negociação. Foi um caso de procedimento. O parágrafo de Bali chamava os Estados a "fornecer a todos serviços sanitários básicos eficazes, respeitando as legislações nacionais e os valores culturais e religiosos", sem menção do planejamento familiar. Essa posição era defendida pelos EUA sob a presidência de Bush, os paises muçulmanos e o Vaticano. O Canadá, apoiado pela EU, dizia que a última parte da frase significava a vitória dos Estados recusando o aborto ou a prática da excisão. Juntos pediram acrescentar a expressão "em conformidade com todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais". Sem esse acréscimo, que foi aprovado depois de áspero debate, não haveria menção nenhuma dos direitos humanos no documento final.

 

Agricultura: os paises em desenvolvimento pediram novamente que tanto na Europa como nos EUA fossem suprimidas as subvenções à agricultura que impedem a concorrência dos seus produtos agrícolas e os privavam de importantes recursos financeiros. EUA e UE formaram uma frente unida e conseguiram que Plano de Ação apenas confirmasse as posições de Doha: uma diminuição e supressão dos subsídios num prazo indefinido. Na 2ª reunião ministerial da "rodada do desenvolvimento", no México em novembro de 2003, a batalha será forte.

 

Biodiversidade: houve, neste campo, dois pequenos avanços. A proposta é de chegar em 2010 a inverter a tendência destrutiva atual da biodiversidade. Mas nenhum objetivo preciso é indicado. Apenas chegou-se a algo mais preciso para a pesca já que 75% dos cardumes são ameaçados de destruição irreversível. O objetivo fixado para 2015 é de não pescar mais peixes do que permite a regeneração dos estoques. O acréscimo "onde for possível" reduz a significância do objetivo.

 

Outros resultados

 

Tamanho e tão caro evento por tão poucos resultados diante de tamanhos desafios ambientais, sociais e de produção! O balanço pode parecer medíocre; e o é! Dando uma nota ao resultado sobre os principais temas em jogo, um grupo de ONGs chegou à nota final: 2,2. As apreciações variam. Talvez não foi tão ruim como muitos temiam, mas não correspondeu – nem de longe – ao que era necessário para encarar de verdade os imensos desafios da sustentabilidade e assumir as nossas responsabilidades diante do presente e do futuro. Alguns outros resultados ilustram o porquê da desilusão e frustração de muitos.

 

Uma tentativa maior dos paises ricos e das multinacionais foi submeter qualquer acordo ambiental multilateral às regras da OMC. A proposta estabelecia a prevalência decisiva do mercado sobre a defesa do meio ambiente. As medidas ambientais poderiam ser consideradas como medidas protecionistas e ser denunciadas diante da OMC. Mais! o mercado ia ser considerado como o melhor instrumento para proteger a integridade do planeta! Por incrível que pareça, tamanha contradição foi derrotada no último momento pela voz de um pequeno país, que declarou : "em consciência, não posso aprovar tal proposta". E, por 'efeito dominó' muitas outras vozes se juntaram para recusar essa proposta tão perniciosa.

 

A presença nova e atuante das multinacionais no desenvolvimento – o que alguns chamam a "tentativa de privatizar o desenvolvimento sustentável" – foi a confirmação das 'novas iniciativas de parceria' para o desenvolvimento, chamadas "Tipo 2". Até Monterrey, a ONU apoiava apenas acordos intergovernamentais que apresentassem um marco regulador de parceria entre os governos e outros setores. O novo modelo de parceria "Tipo 2" promove acordos entre empresas, autoridades públicas, e setores da sociedade civil. O risco é que os governos abdiquem de suas responsabilidades e deixem às empresas o maior controle dos processos de desenvolvimento. Muitas vezes a sociedade civil não dispõe dos instrumentos de informação, organização ou mesmo de formação para acompanhar processos complexos. Já mais de 400 'projetos de parceria' foram apresentados à ONU pelas grandes empresas para se beneficiar dos recursos disponíveis. No entanto muitos dos diversos projetos não estabelecem uma política de desenvolvimento. O risco é real: sem controle nacional e internacional pelos governos, organismos internacionais ou sociedade civil, o desenvolvimento sustentável pode depender sempre mais do capital privado.

 

Outro sinal da nova presença das empresas no desenvolvimento foi a debate sobre as suas responsabilidades sociais e ambientais . Tal tema era novo num recinto oficial internacional tão solene. A proposta feita, já faz anos, por setores civis, intelectuais e até empresariais de elaborar um código ético para as empresas, em matéria social e ambiental, enfrentou uma maior resistência. É assim que a responsabilidade da empresa é mencionada no plano de ação e na declaração política, mas de forma bem geral e sem caráter obrigatório.

 

O conceito de sustentabilidade questiona radicalmente o modelo econômico predominante produtivista-consumista. Tanto pela sua abrangência como pela urgência de soluções, o tema era mesmo sensível. Alguns pequenos primeiros passos foram feitos. Num prazo de dez anos, alguns programas de modificação dos modos atuais de produção e consumo (economia ou novas fontes de energia; melhor preservação dos recursos naturais, etc.) deveriam ser encaminhados, mas a articulação entre o crescimento da economia e a degradação do meio ambiente foi rejeitada.

 

Entre as ONGs, muitos temiam que alguns princípios centrais da "Rio 92 " fossem abandonados e que a "Rio + 10" se transformasse numa "Rio – 10". O princípio de precaução ou cautela, adotado no Rio, estabelece a possibilidade para um Estado de restringir uma atividade ou um produto na ausência de certeza científica sobre o seu caráter inofensivo. O debate principal até agora diz respeito ao controle sobre os OGMs (Organismos Geneticamente Modificados). A batalha foi dura. O próprio Secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, vaiado pela Assembléia, questionou desde a tribuna da plenária os países da África que se recusam a aceitar o milho transgênico das empresas norte-americanas para resolver os problemas da fome! O princípio de precaução se transformou no documento final numa "aproximação de cautela", mas a tentativa de submetê-lo às regras da OMC foi rejeitada. A disputa continua e será de novo intensa na próxima reunião ministerial da OMC em 2003.

 

O outro princípio central 'de responsabilidade comum mas diferenciada' , também chamado de 'internalização dos custos' ou de maneira mais popular de 'poluidores-pagadores'. O princípio foi lembrado no documento final, sublinhado a responsabilidade dos países mais ricos na degradação do planeta, mas sem nenhum caráter coercitivo.

 

A problemas globais, soluções globais. Os riscos ambientais, articulados às situações sociais e econômicas, não têm soluções meramente nacionais. Tal é o desafio da Governança global. Houve apelos para implementar um organismo internacional – ao exemplo da OMC – com autoridade legal reconhecida por todos para regular e disciplinar as políticas ambientais. A resposta foi um apelo a soluções nacionais (sic) e regionais, sem aceitação de uma autoridade mundial. O papel do PNUMA não foi modificado; apenas os meios do Fundo para o Meio Ambiente serão aumentados de US$ 3 bilhões.

 

Desde 1969 os paises da OCDE se comprometeram de consagrar 0,7% dos seus PIB em favor do desenvolvimento. Bem utilizado, tal montante de APD (Ajuda Pública para o Desenvolvimento) teria facilitado grandes avanços. Grande é a distância entre as declarações e os atos: o total da APD alcança apenas 0,32 % dos PIB (0,10% para os EUA). As boas intenções foram renovadas sem convencer muito. UE e EUA confirmaram as promessas feitas em Monterrey de aumentar respectivamente de US$ 6 bilhões e US$ 5 bilhões as suas ajudas, desta vez não mais para o desenvolvimento mas para fortalecer os organismos e as estruturas de promoção do livre comércio. Tais intenções nos deixam perplexos: será que os paises ricos querem realmente alcançar os objetivos sociais do Milênio, ou trata-se outra vez de fazer falsas promessas para manter a paciência dos excluídos?

 

O fato de a 2ª Cúpula da Terra acontecer na África favoreceu uma certa atenção aos problemas particulares do Continente. Johannesburg era provavelmente a única cidade do continente com infraestrutura suficiente para tamanho evento. O prisma predominante de todos os temas da cúpula era o do comércio e das finanças. Era a chave interpretativa principal. Por certo, encontram-se no Plano de Ação algumas propostas de luta contra a desertificação com a ajuda financeira do Fundo para o Meio Ambiente, mas o verdadeiro plano de ação para a África, com a bênção dos países mais ricos e das instituições financeiras internacionais é o NEPAD (New Partnership for Africa´s Development) . Esse novo programa, aprovado pelos líderes africanos em outubro de 2001, adota o comércio como força principal para o desenvolvimento e a luta contra a pobreza. ONGs e grupos das Igrejas questionam: o programa foi elaborado por alguns tecnocratas liberais, sem análise das verdadeiras necessidades prioritárias da África e sem consulta dos organismos competentes da sociedade civil.

 

"Prevaleceram os interesses econômicos; os problemas sociais e ambientais foram sacrificados": essa opinião predominava entre as ONGs. Como justificar que os direitos humanos e direitos sociais sejam apenas mencionados no Plano de Ação final? Tanto uns como outros estavam ausentes do documento preparatório feito em Bali. Como vimos, a única menção dos direitos humanos foi introduzida a pedido do Canadá e da UE no capítulo sobre a saúde, para o acesso das mulheres ao planejamento familiar e a luta contra as violências sexuais. Os direitos sociais foram introduzidos timidamente numa referência à OIT e são secundários com respeito às regras da OMC.

 

A Declaração política passou por fases delicadas. O esboço demasiado geral e vago, proposto pelo secretário geral da cúpula não satisfazia nem um lado (países ricos e empresas transnacionais) nem o outro (países em desenvolvimento e ONGs). O bloqueio foi intenso. Apareceu a eventualidade de não haver Declaração política ou uma assinada apenas pela África do Sul. A iniciativa da própria presidência da cúpula – o presidente sul-africano Tabo Mbeki – salvou a situação. O texto aprovado no último momento (4 páginas) confirmou os sentimentos de muitos: existe uma desproporção total entre as declarações e as práticas. A Declaração política proclama o grande otimismo e a determinação irrestrita dos chefes de Estado de encarar os problemas ambientais, sociais e econômicos da sustentabilidade e de alcançar os objetivos sociais do Milênio. Mas onde estão no Plano de Ação os objetivos concretos e as metas quantitativas, com prazos e meios definidos, com procedimentos de implementação e de controle? A declaração política não menciona o protocolo de Kyoto, os subsídios à agricultura, a governança global, nem lembra os fortes princípios da "Rio 92". Mas, positivamente, faz um apelo à responsabilidade das empresas (maneira elegante de reconhecê-las como ator integral do desenvolvimento sustentável), confirma o papel central da ONU (contra as tentativas dos EUA de relativizar o seu papel para valorizar o da OMC) e os benefícios do multilateralismo como método do futuro. A experiência do tratamento reservado às Declarações políticas de outros encontros internacionais – a do Rio, particularmente – não permite ser muito otimista.

 

Conclusões

 

"Em Johannesburg, a Cúpula da Terra foi 'pirateada' pelas grandes empresas" titulava um grande jornal internacional. A cúpula confirmou o papel crescente da OMC na definição das políticas internacionais. O comércio predominou, o ambiental foi tema anexo, o social foi deixado de lado. Doravante o livre comércio é considerado como a panacéia não só para os problemas da pobreza e miséria, mas também às ameaças de destruição ambiental.

 

Os EUA pressionaram com todo o seu peso (com uma enorme delegação oficial) para promover essa prevalência do comércio, defendendo os seus interesses com unhas e dentes. Junto com a EU, impuseram as regras de jogo durante toda a cúpula. O encontro foi 80% dos dois blocos com, às vezes, a participação anexa de um ou outro país sobre pontos específicos. Mesmo que representando os interesses de 132 países em desenvolvimento, o G77/China, nem sempre unido, não conseguiu fazer valer os seus pontos de vista. Houve negociações? Talvez seja mais correto ter a lucidez e coragem reconhecer que foi muito mais a imposição das regras pelos mais fortes.

 

O vago do conceito de Desenvolvimento Sustentável que não ajudou a avançar na década de 90 não foi superado durante a cúpula. As contradições entre os três pólos: ambiental (planeta), social (povo) e econômico (prosperidade) aparecem mais claramente. A complexidade da questão do futuro do nosso planeta, da nossa humanidade e das gerações futuras é mais evidente do que 10 (Rio) ou 30 (Estockholmo) anos atrás. A responsabilidade comum de todos os paises e de todos os atores não pode ser mais escondida. Já é tempo de distinguir melhor os múltiplos desafios, buscar e encontrar soluções concretas para cada um deles. Metodologicamente, as grandes celebrações demasiado abrangentes, como essa última cúpula de Joburg, mostraram os seus limites. Encontros menores, mais diversificados e melhor focalizados podem suscitar maior interesse e participação responsável de muitos.

 

[*] Por por Bernard Lestienne. IBRADESa http://resistir.info

 

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